Por Manoela Sawitzki
“E se um escritor apaixonado pela verossimilhança começar a achar que os livros não têm mais o poder de convencer as pessoas sobre as histórias que ele conta?”. A partir dessa premissa, o escritor gaúcho Reginaldo Pujol Filho se lançou na construção da trama do romance Só faltou o título. Com narrador-protagonista, um “hater old school”, escritor frustrado que ainda não conta com a internet para destilar suas mágoas, Pujol discute e leva às últimas consequências questões do universo literário e daqueles que persistem às margens do mercado.
Antes do romance Só faltou o título, você teve dois livros de contos publicados e também participou de antologias com outros escritores. Simultaneamente, passou por uma formação acadêmica em literatura. Poderia falar um pouco sobre teu caminho até aqui, como escritor e pesquisador?
Acho que tudo passa pela minha entrada na Oficina do Charles Kiefer, lá em 2002. Entrei meio na brincadeira, a convite de um amigo que tentava fechar uma turma e sabia que eu escrevia textos e mais textos em casa. E foi no longo período em que estive na oficina que foi despertado um leitor mais atento e crítico, que eu não imaginava que eu poderia ser. Leitor dos textos literários, da produção dos meus colegas e da minha própria escrita. Foi na oficina, muito pelo estímulo do Kiefer, que me descobri escritor, com ideias de fazer livros, pensar literatura e tudo o mais. Antes disso, fazia textos que nem sabia chamar de contos ou crônica. Nas aulas, fui tendo os primeiros contatos com leitura crítica, com a poética do Aristóteles, as ideias sobre o conto de Poe e Cortázar, formalistas russos, questões teóricas que eu não supunha existir. E há um lugar comum de que o escritor em contato com a teoria pode se engessar. Porém, no meu caso, sempre foi muito diferente. As teorias, regras, o que for, sempre me puseram muito curioso, com vontade de bagunçar essas ideias, de tentar dar um nó, de ver se tinha uma brecha para escapar. Então vivi esse tempo de aluno de oficina muito nesse papel de agente duplo: escrevendo e pensando a teoria para escrever. E, fora isso, o contato com o Kiefer e com as dezenas de colegas que tive nesse tempão foram escancarando minha ignorância, o tanto que eu não tinha lido, o tanto que eu não sabia. E aí fui buscando pessoas e mais pessoas que me ensinassem, que trouxessem mais leituras, mais questões para me botar a pulga atrás da orelha. E, sabe, hoje já no doutorado em Escrita Criativa na PUC-RS, não consigo dissociar o pesquisador do escritor, porque tenho o hábito de dizer que fazer literatura é uma espécie de fazer crítica literária. Quando me ponho a escrever, estou lidando com tudo o que já li, com a tradição e o contemporâneo, tentando entender uma ideia de literatura que quero propor naquele momento. Acho que é isso.
Os livros anteriores Quero ser Reginaldo Pujol Filho e Azar do personagem anunciam nos títulos um interesse pela literatura como tema e pelas fronteiras entre o ficcional e o biográfico. Esse campo permanece e se expande em seu primeiro romance, todo construído em torno do universo literário (ou talvez das suas margens). Agora, a questão da autoria está em primeiro plano. Desde quando e em que medida essas questões ainda te acompanham?
Quando eu era criança, eu li muito a Turma da Mônica. E sempre me diverti muito quando os personagens olhavam para fora do gibi e se dirigiam ao leitor. Obviamente, não pensava em questões estéticas e metalinguísticas aos oito, nove anos. Mas, depois de ter escrito o Azar do personagem e, quando começava a escrever o Quero Ser, me dei conta, por exemplo, de que, quando li Machado de Assis pela primeira vez, mais do que a ironia machadiana, por exemplo, me saltou aos olhos esse diálogo com o leitor, ou a leitora. E até hoje recursos assim, quando não são mera imitação de Machado, de Sterne ou do Quixote lendo o Quixote e discutindo a versão apócrifa ou, por que não, de Maurício de Souza, me encantam, me divertem. Mas é difícil, para mim, localizar no tempo, de fato, quando é que isso, a metalinguagem, a metanarrativa, passou do encanto do leitor para a inquietação do autor. Sei que, desde os primeiros contos que comecei a escrever com um pouco mais de atenção e detalhe, esses jogos vão aparecendo, o personagem que questiona o autor, o narrador que se critica, nem sempre com muita consciência de estar fazendo isso. Mas não vejo que eu trabalhe tanto com o biográfico explícito, assim no sentido da autoficção ou da reprodução de fatos e episódios da minha vida. Tenho contos nos meus livros anteriores em que surjo como personagem, mas mais num aspecto irônico, num exagero das minhas fragilidades como escritor, caricaturas de mim, talvez, como o sujeito que vai fazer análise com o Analista de Bagé para lidar com a angústia da influência ou o outro que quer tentar morar no bairro criado por Gonçalo M. Tavares. E agora no romance, no Só faltou o título, a impressão que eu tenho, é que um caldão bem grosso e múltiplo acabou se misturando para dar no que deu. Porque, acredite, tenho a premissa desse livro anotada num pedacinho de papel acho que desde 2006, minha primeira ideia de romance, ela era aparentemente muito, muito simples: era algo como “e se um escritor apaixonado pela verossimilhança começar a achar que os livros não têm mais o poder de convencer as pessoas sobre as histórias que ele conta?”. Era algo assim, que foi sendo alimentado por uma série de coisas, por uma série de tipos de autores que fui vendo ao longo dos anos, do autopublicado (essa margem que tu cita e acho muito legal trazer para a ficção) ao consagrado, por um clima não só do mercado literário, mas da sociedade de constante crítica e nenhuma autocrítica, pela emergência de termos como a autoficção, pela discussão sobre autoria na literatura e nas artes, pela radicalização de uma realidade mediada onde a confusão entre narrado e vivido é constante (agora mesmo, isso que escrevo é verdade ou narração?), ih, tanta coisa foi dando corpo ao romance que nem sei. Acho que se tivesse escrito em 2006 seria meio bobo. Espero que hoje, não.
O romance foi desenvolvido durante um mestrado em Escrita Criativa. Antes disso você fez também uma especialização em Artes da Escrita em Portugal. Como foi a experiência desse duplo movimento, pela produção acadêmica e literária, algo que até pouco tempo se mantinha bastante dissociado? Basicamente a academia assumia uma linguagem particular para se voltar ao que era produzido literariamente fora, mas isso tem mudado.
Desde que a PUC abriu as primeiras vagas de Escrita Criativa (ainda vinculadas ao curso de Teoria da Literatura), eu namorava essa possibilidade, mas naquela época eu trabalhava em agência de publicidade, não tinha como. Mas, em 2011, junto com minha namorada, fui pra Portugal, meio que nessa ideia de romper com a vida pregressa e tentar me aproximar mais da literatura. Lá fiz esse curso que me trouxe de volta para perto da universidade (me formei em 2002), aguçou esse gostinho por esse movimento pendular, com um pé na teoria e outro na escrita e me deu a oportunidade de conviver com professores incríveis como Gonçalo M. Tavares, Mario de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Gustavo Rubim, Fernando Cabral Marins… Foi um período muito meu, produzi ensaios na pós-graduação, escrevi alguma ficção, um romance que está guardado aqui e que me motivou a, voltando para Porto Alegre, ir atrás do mestrado na PUC. Pra quem não sabe, a PUC é a pioneira do Brasil na área de Escrita Criativa (de longa tradição no mundo Anglo Saxão). E a experiência foi maravilhosa. Ter dois anos para estudar literatura (na teoria e na prática) e para produzir um projeto é o que mais se aproxima para mim de um ideal de vida. Muitas das questões que alimentam o livro surgiram em sala de aula, em conversas com meu orientador, Ricardo Barberena, em leituras de colegas de um grupo de pesquisa coordenado pelo professor Paulo Ricardo Kralik. O mestrado e o doutorado reúnem uma turma (entre professores e estudantes) de altíssimo nível, curiosa, entregue e aberta para investigar a produção literária, o que cria um campo muito fértil para produzir. Há livros maravilhosos saindo lá da PUC. Mas é claro que nem tudo são flores. A PUC é uma ilha de Escrita Criativa. Sei que há cursos como os de poéticas contemporâneas dos institutos de artes, que já têm tradição em pesquisas criativas, mas na literatura, a coisa ainda é um pouco complexa. Temos que ir brigando às vezes para encaixar nossos trabalhos nas caixinhas acadêmicas, para sermos aceitos de fato na universidade, para que parem de fazer a pergunta “escreveu um livrinho e quer ser mestre, doutor?”. Esse ranço ainda rola. Mas é por causa dele que faço aquela reflexão do valor da criação artística como crítica, como reflexão de primeira mão, como elaboração sensível acerca do campo em que ela está inserida.
O que te levou a querer ler e falar sobre o mundo pelos olhos e a voz de Edmundo, o personagem-narrador, escritor frustrado, revisor cáustico de textos alheios, comentador mordaz sobre tudo, enfim, um hater típico?
Como eu disse antes, eu tinha uma hipótese sobre livro já há um bom tempo e, inicialmente, acho que o personagem passava longe desse sujeito que acabou aparecendo, o Edmundo. Mas, quando, de fato, passei a tentar desenvolver essa ideia, comecei a ver que, para o personagem chegar onde ele chega, eu precisava de um sujeito que carregasse muita raiva e também ressentimento, essa coisa de mastigar a dor, remoer, reviver mentalmente. Alguém que fala muito pouco, mas está em constante elaboração mental. E tu faz referência ao hater típico, mas prefiro pensar em hater old school, pré-desnudamento das redes sociais. Essa foi uma escolha que tive que fazer: localizar Edmundo temporalmente antes da superpopularização do Facebook, ali por 2011, 2012, que seria uma válvula de escape tremenda para ele e que era muito tentador para escrever, imaginar bate-bocas virtuais dele. Mas aí ele não alcançaria o limite que cansou. Assim, em 2011, 2012, a jornada dele já está próxima do desfecho, ele não tem mais tempo de descobrir o Facebook, ele está extravasando para outro lado. Mas, voltando à pergunta, com o Edmundo esboçado, com algumas reflexões dele e episódios discutidos o Barberena (meu orientador), senti que tinha uma coisa sensacional pela frente, que julgo um dos grandes baratos de escrever. Esse exercício maluco de pensar como o outro, de construir lógicas e raciocínios que façam sentido, mesmo que sejam disparatados para o meu ponto de vista. Mas, mais do que isso, tentei colocar, por vezes, no meio desse mundaréu de insanidades que ele pensa, algumas coisas que não fossem necessariamente absurdos, mas que eu acho que assim vão soar pelo tom histriônico do Edmundo e pelo vendaval de asneiras que saem dele. Acho que nada disso existia a priori, mas levado pelo, digamos ar do tempo, acabou sendo um modo de elaborar discursos que tão aí, que correm solto e que não são desprovidos de sentido para muitas pessoas. Além de exercitar esse modo paranoico de lidar com o mundo que, sim, é radical e violento em Edmundo, mas, se pensarmos bem, mora em algum canto de todos nós: quem, no meio de um engarrafamento, nunca reagiu como se aquele engarrafamento fosse contra si? Ou acha que a sua fila do supermercado é mais lenta, ou que o garçom prefere não te ver no restaurante. Vira e mexe nos colocamos nessa posição de achar que o mundo está contra nós, que tudo se dá em relação ao nosso pobre umbiguinho e esquecemos quem outros 7 bilhões de umbigos nessa história toda. Mas felizmente elaboramos isso e seguimos adiante. O Edmundo, coitado, não. Acumulou, gota a gota cada uma dessas traições do mundo.
Edmundo se expressa, constrói seu discurso de forma bastante peculiar. Você pode comentar esse traço do personagem, seu estilo?
Imagino que esteja falando da sintaxe dele, da hipercorreção e fluxo às vezes imparável do discurso. Tem várias coisas que eu quis trabalhar aí. Um elemento que era superimportante para mim era a formação leitora do Edmundo que o conduziria ao idílio de ser escritor. Quis acreditar que ele se apaixonou por literatura no interior do RS, no internato onde estudou, tendo acesso a traduções antigas e empoladas dos clássicos, a autores brasileiros do começo do século 20, uma coisa beletrista, tomada por figuras e palavreados que, à época, podem ter sido grandes achados linguísticos, mas que, hoje, soam clichês, desgastados. Uma pretensa grandiosidade, palavras querendo soarem fortes e cheias de sentido. Então quis incluir muito desse palavreado no modo como Edmundo constrói seu discurso, abusando de olhares oblíquos, estremecimentos e coisas por aí. A isso somei esse comportamento caça erros, que odeia o coloquial, que conjuga os verbos quase que com petulância. E para deixar isso evidente, optei por mudar o foco do discurso muitas vezes, passando de um olhar em primeira ou terceira pessoa, para diálogos imaginários ou consigo mesmo, usando a segunda pessoa, tu foste, tu fizeste, que dá um climão terno e gravata para o modo de falar. Só que isso é movido por sentimento de injustiça, incompreensão e de uma glória prometida e não encontrada que faz com que ele emende raciocínios, impropérios, indagações, juízos, um no outro, quase sem parar.
Ele também faz críticas em massa. Mas o que lhe sobra como crítico, falta em autocrítica. Quase ninguém, além de Nietzsche e Dostoiévski e outros poucos, escapa da sua artilharia. Escritores contemporâneos, alguns deles teus amigos pessoais, são atacados violentamente. Editores e editoras, jornais, jornalistas. Enfim, a crítica, o ato de criticar destrutivamente, torna-se um elemento bastante central nesse livro. Por quê?
Não era uma ideia inicial, não era o ponto de partida do livro, mas quando comecei a pensar em ressentimento, nessa falta de empatia completa que o Edmundo tem, acho que também tomado pelo ar do nosso tempo, esse foi um traço que ganhou mais força, exercitar esse papel de alguém incapaz de achar que as coisas no mundo podem mover-se por outro motivo que não seja lhe trazer alegria ou sofrimento. E nesse comportamento solar, achar que tudo rodopia ao seu redor, parece impossível o exercício de uma verdadeira autocrítica, uma vez que eu sou o centro, e os outros é que me ferem ou me dão carinho. Eu estou aqui, na minha vida, fazendo o melhor que posso e o resto do universo insiste em se desarranjar contra mim. Vocês não veem o mal que me fazem? Vocês não me veem?, poderiam ser as perguntas de Edmundo, se ele se desse ao trabalho dialogar com alguém, acho eu.
Ah, sim, e tem essa história da metralhadora verbal do Edmundo apontar para todo mundo, inclusive amigos meus, ou gente que eu idolatro. Na verdade, a maioria nem sabe ainda que foi citada, aos poucos vou avisando, espero que todos aceitem bem. Mas isso fazia parte do espírito do jogo. Acho que os gostos literários do Edmundo divergem em muitos pontos do meu (embora eu adore Dostoiévski, por exemplo). Assim, gente da minha geração, ou que simplesmente comete o pecado de publicar agora e ser resenhado, ser bem lido, como Amílcar Bettega, Altair Martins, Daniel Galera e tantos outros são citados. Todo mundo que recebeu algum tipo de atenção nesse período entre 2005 e 2010 (em especial, atenção da Zero Hora, que é meio de comunicação que o Edmundo lê), entra na mira dele, pois é quem injustamente rouba o espaço dele. Tem também aquele momento em que ele lamenta não termos mais Erico Verissimo e apenas o Luis Fernando Verissimo, que ele chama de comunista (o que é uma ofensa, na opinião dele), humoristazinho, ou coisa parecida, embora eu não me canse de dizer que comecei a escrever porque queria imitar os textos do LFV, Analista de Bagé, Ed Mort, etc.; ou ainda a raiva que ele nutre da Palavraria, livraria que eu frequento desde a inauguração, onde vou lançar o livro e os donos me chamam pelo apelido. Costumo pensar que o livro traz uma série de homenagens tortas e esse foi um das tantas coisas que gostei dez fazer nessa escrita, quero dizer, criar argumentos para alguém não gostar de coisas que eu gosto, sentir raiva, ódio ou desprezo por gente que admiro, assim como recolher, lembrar e municiar Edmundo com uma compilação de argumentos rasteiros, preconceitos facílimos, que muita gente arrota achando que está produzindo uma leitura arrojada ou nova das coisas. Ih, tem tanta gente, tem citação indireta ao Rosp, que lançou meus outros livros, ao Antônio Xerxenesky, tem até um trecho, escondidinho, em que ele fala mal de mim. Mas não vou contar qual é.
A Record é citada inúmeras vezes na trama. Em geral, como uma porta fechada para o Edmundo escritor e aberta para o revisor. Essa inclusão na trama foi anterior ou posterior ao teu contato com a editora? Como teu editor recebeu esse jogo?
Isso foi uma coisa muita divertida do processo. Quando botei a Record no livro, eu não tinha a menor ideia de que ia publicar com ela. Eu só precisava colocar Edmundo em contato com o sonho de publicar pela maior editora do Brasil e também suscetível a tomar carteiraços da assistente editorial, aquelas coisas, “somos a maior do Brasil, acho que sabemos o que estamos fazendo”, coisas que ferem de morte Edmundo. Então botei no livro e segui o barco e, claro, às vezes durante a escrita até pensava: acho que que estou escrevendo este livro só pra mim, se o pessoal não tiver bom humor (e o pessoal não anda tendo), vou tomar um pau ou ser ignorado. Mas só que daí o Ricardo Lísias (que participou da minha banca de mestrado) e a Mari Teixeira (que é a minha agente), em diferentes momentos, leram o livro, se divertiram muito e pensaram na mesma pessoa, na mesma editora para publicar: Carlos Andreazza, na Record. Mas com uma ressalva: talvez eu tivesse que mudar o nome da editora. Pois o Carlos leu, gostou do material, e, surpreendentemente, passou um mês e nada, dois meses e nada. Aí veio a preparação do original e fui correndo buscar a sugestão “Quem sabe trocar por Companhia, Alfaguara ou uma editora fictícia para não dar problema”, mas não achei. Nenhuma ocorrência da palavra Record sublinhada. Aí um dia falei pro Carlos isso, que algumas pessoas achavam que ele ia pedir para mudar a editora e coisa e tal, e ele deu risada e me disse algo como, “mas teu personagem esculhamba todo mundo, como é que não ia tocar o pau na gente, tem mais é que tocar” e ainda me disse que o grande defeito do livro era o Edmundo não falar mal dele, o Andreazza. Mas quero deixar bem claro: isso só aconteceu porque o Andreazza assumiu a ficção nacional em 2013, e o livro acaba em 7 de fevereiro de 2013. Senão acho que ele ia ouvir também.
